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Por uma oportunidade de emprego digna e decente para todo mundo

Por Caio Vilella

As crises econômicas e financeiras são inerentes ao funcionamento do sistema capitalista. Períodos de tranquilidade econômica são os motores que conduzem os agentes a subestimar riscos e superestimar expectativas de retorno, combinação fatal que gera alavancagem e posterior crise. Estas são caracterizadas por queda da produção e, consequentemente, aumento do desemprego, fator amplificador da desigualdade, pobreza e miséria.

Contudo, períodos de prosperidade econômica, em que o mercado de trabalho opera com uma taxa agregada próxima do pleno emprego da força de trabalho, podem esconder um segundo fenômeno tão perigoso quanto o desemprego: o subemprego. Este segundo fenômeno atinge de maneira mais intensa as minorias representativas como mulheres e negros. A título de exemplificação, mesmo quando a taxa de desocupação brasileira orbitava em torno dos 6,2% em 2013, a taxa de desocupação feminina era 7,6%. Para se ter uma ideia, no auge da pandemia da COVID-19, quando o mercado de trabalho registrava seus índices mais elevados de desemprego, os homens brancos registraram taxa de 7,4% de desocupação, ainda inferior àquela verificada pelas mulheres em 2013 (melhor momento do período recente). E esta inserção desigual das mulheres no mercado de trabalho as deixam sujeitas a aceitar condições de trabalho insalubres e mal remuneradas.

Assim, quero destacar dois principais desafios das políticas públicas: 1) conduzir e manter o mercado de trabalho em pleno emprego e 2) regular o mercado de trabalho neste nível.

Além de promotor das desigualdades mencionadas, o setor privado é incapaz de solucionar o primeiro desafio, pois a sua decisão de empregar é atrelada à sua expectativa de rentabilidade. Isto é, justamente nos períodos de recessão, quando o desemprego está aumentando, o pessimismo das firmas costuma aumentar o número de demissões sem qualquer mecanismo compensador. Desta monta, temos que a solução para o desemprego precisa ser gerada pelo ente público, o único capaz de desassociar a decisão de empregar da lucratividade, aumentando a oferta de emprego quando for necessário.

Desta constatação surge a política que os economistas chamam de Estado como Empregador de Última Instância, ou como ficou publicamente conhecida: Programa de Garantia de Empregos (PGE). Seja qual for o nome dado, esta política se baseia em uma oferta pública e ilimitada de trabalho ao salário-mínimo estipulado pelo governo. Em suma: o Governo, através da União, mas de forma descentralizada, ofereceria um emprego para todos(as) aptos(as), prontos(as) e dispostos(as) a trabalhar por um salário decente.

O cuidado, então, deve ser tomado no sentido de garantir que os empregos gerados tenham impactos esperados tanto no sentido de mitigar o risco inflacionário como de combater a pobreza associada ao desemprego e as desigualdades supramencionadas. Isto é, mais do que gerar emprego, o PGE deve criar o emprego certo para a pessoa certa. A seguir descreverei alguns aspectos gerais que minhas pesquisas me fizeram acreditar serem essenciais para a manutenção perene do programa em uma economia como a brasileira.

Primeiro seria necessário criar uma plataforma para que os trabalhadores pudessem se inscrever. A ficha de inscrição geraria uma ordem de pagamento para a União, responsável pelo salário do trabalhador, e uma ordem de serviço para o responsável regional por alocar a força de trabalho. A ideia é criar um mecanismo automático de política fiscal que passa a ser acionado tão logo o trabalhador seja demitido pelo setor privado, evitando que o período recessivo ganhe profundidade. Assim que demitido, o trabalhador terá acesso a um serviço remunerado por um salário-mínimo independente de qualquer amarra orçamentária da União. Quando os gastos privados voltarem a crescer e as empresas voltarem a contratar, esse bolsão de trabalhadores irá esvaziar a medida em que os trabalhadores migrarem do PGE para o emprego privado.

Um segundo aspecto importante seria a criação de um conselho nacional de barganha salarial. Este conselho seria composto por representantes dos sindicatos dos trabalhadores, sindicatos patronais e demais entidades de classe interessadas que, através da mediação Estatal, negociariam o reajuste salarial pago pelo programa. Uma vez que o reajuste do programa fosse definido em uma mesa de barganha, ele serviria de “farol” para que os demais reajustes salariais seguissem a mesma direção. A ideia deste conselho seria mediar o conflito distributivo e mitigar o risco inflacionário, reproduzindo uma ferramenta utilizada pelos países nórdicos durante as quatro décadas em que conseguiram conciliar pleno emprego com estabilidade de preços. Vale destacar que uma lei adequada de controle do fluxo de capitais internacionais também seria providencial em ajudar a mitigar o risco inflacionário, aliviando a pressão cambial sobre os preços.

Tão importante quanto a jornada máxima de quatro horas diárias de trabalho, seria as outras quatro horas diárias remuneradas dedicadas ao programa de treinamento e capacitação. Além de prover um emprego, é preciso manter o trabalhador atualizado nas suas práticas laborais, bem como corrigir eventuais lacunas da sua formação básica. No Brasil, onde 29% da população adulta é considerada analfabeta funcional, cursos de educação básica como matemática, português e escrita de currículo podem ter impacto significativo nas chances de reinserção no mercado de trabalho. Para trabalhadores com melhor nível de educação, o período de quatro horas diárias poderia ser dedicado a estudos de novas técnicas produtivas ou procura de emprego no mercado privado. O objetivo deste programa de treinamento seria reduzir o que economistas conhecem por efeito histerese do mercado de trabalho, segundo o qual o primeiro trabalhador demitido costuma ser o último a ser recontratado.

Seguindo as sugestões, a implementação deste programa deveria ocorrer por etapas, a começar oferecendo emprego para pessoas em situação de insegurança alimentar. Estas pessoas poderiam ser alocadas em estruturas comunitárias já existentes para a produção de alimentos orgânicos, pequenas obras, limpeza e manutenção de espaços públicos, etc. Com o tempo, as etapas posteriores iriam ampliando o público-alvo e os serviços prestados. Não é possível afirmar a priori quantas etapas seriam necessárias, mas ao final da última etapa, é preciso garantir que todos aqueles(as) aptos(as), prontos(as) e dispostos(as) a trabalhar por um salário-mínimo encontrem uma posição no PGE. A implementação por etapas é justificada tanto pelo fato de evitar choques de demanda, que poderiam provocar inflação temporária, como também para oferecer oportunidade para os que mais precisam, enquanto as estruturas institucionais supracitadas são criadas para atender a demanda por vir.

Além destas instituições já mencionadas (plataforma de cadastro, conselho nacional de barganha e os programas de treinamento), teríamos que criar Centros de Empregos Locais (CELs). Estes centros regionais seriam responsáveis por receber a ordem de serviço da União e, de acordo com as necessidades locais ponderadas pelas diretrizes gerais do programa, alocar o trabalhador em uma atividade laboral. Além disso, caberia aos CELs, compostos por moradores locais, a fiscalização e a supervisão dos serviços prestados.

Estes postos de trabalho devem ser usados para prover serviços para a comunidade local tais como cuidados de crianças, cuidados de idosos, reparos de pequenas infraestruturas, saneamento básico, vigilância de espaços públicos (inclusive florestas e áreas de proteção ambiental), aulas de reforço escolar, atividades culturais e esportivas, produção de alimentos orgânicos e agricultura familiar, reflorestamento e atividades de mitigação de danos ambientais entre outras atividades que a comunidade local venha requerer.

Além de a oferta de empregos mitigar o desafio do desemprego, espera-se que o salário e as condições de trabalho oferecidas pelo programa regulem as condições de oferta de trabalho. As minorias representativas terão uma opção digna de trabalho que, além de lhes prover renda sem terem que se sujeitar a qualquer condição laboral, geram uma série de efeitos positivos para a comunidade local. O programa parcial de garantia de empregos experimentado pela Argentina no início dos anos 2000 (Jefes y Jefas de Hogar) foi uma experiência positiva de empoderamento feminino que nos serve de lição.

As atividades exercidas pelo PGE teriam o efeito de prover serviços que antes poderiam ser de exclusividade das famílias mais abastadas. Quando implementado um PGE, a mãe negra de favela terá com quem deixar seu filho ou seu parente idoso enquanto poderá ir trabalhar focada apenas em suas tarefas diárias. Reduzindo, assim, a jornada de trabalho não remunerada, que em 2019 foi calculada pelo IBGE em torno de 17 horas semanais para as mulheres com melhor remuneração e 24 para as demais. É de se esperar que estas horas caiam em termos absolutos e relativos.

Por fim, já me antecipando à uma questão recorrente: em um mundo ideal, o PGE e a renda básica cidadã coexistiriam. Para aqueles que não podem ou não querem trabalhar, a renda básica garantiria uma condição mínima de sobrevivência digna. Contudo, para aqueles que estão trabalhando em condições desumanas e insalubres ou para aqueles que estão aptos, prontos e dispostos a trabalhar pelo salário vigente, mas já se acostumaram a ouvir uma resposta negativa do mercado de trabalho, o PGE iria além da provisão de uma renda segura. O PGE constituiria uma oportunidade de reinserir este trabalhador na sociedade, o atribuir uma tarefa útil para a sua vizinhança, melhorar o ambiente em que vive e, além de tudo, o colocar em condições de competir com o trabalhador que não perdeu seu emprego privado durante a fase recessiva da economia. O PGE nada mais é do que garantir, via Estado, as condições básicas de reprodução da força de trabalho que o mercado falhou em prover, atacando, assim, os dois desafios mencionados.

Caio Vilella é Professor Substituto e Doutorando do Instituto de Economia da UFRJ. Pesquisador Membro do Grupo de Economia do Setor Público da UFRJ; Pesquisador associado do Observatório do Banco Central da UFRJ e Membro do corpo Editorial da Brazilian Keynesian Review.

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